sábado, 24 de abril de 2010

Quanto mais fundo...


Outro dia estava conversando sobre o passado, essa conversa me levou para um lugar que a muito tempo atrás eu não ia, voltei ao profundo azul.
Passar uma experiência através de letras é muita pretensão de minha parte, mas contar o que hoje tenho ainda guardado na minha mente ruidosa é possível mesmo que sejam coisas banais que não devam importar para mais ninguém. Aqui posso parafrasear o "Homem do trem" (Matrix) (com a devida liberdade poética claro) "Neste blog eu faço as regras, aqui embaixo eu sou Deus", portanto vou falar do que eu tenho vontade e me transportar para onde eu quiser! Mas não se assuste estimado leitor, quando lembro me torno apenas deleite, talvez consiga passar um átimo do que me faz tão bem.
A lancha estava no extremo do penhasco, o lugar mais a mar aberto da costa possível, a minha localização dava-se exclusivamente pela profundidade da agua, pois na costa catarinense é difícil encontrar lugares que sejam profundos, e este dia é ímpar pela boa visibilidade em aguas que vem direto de mar aberto. Assim algum tempo é necessário para juntar todo o equipamento junto ao corpo, duas camadas de roupa de neoprene são um nojo de colocar com a pele seca, mas quanto mais coberto eu estou la em baixo, mais seguro eu me sinto, mesmo que seja uma falsa impressão, é somente ela que nos move neste momento, logo a única parte do corpo que tenho desprotegida é meu rosto, na verdade apenas olhos e boca tudo o mais agora é de borracha e lycra. Erguer fora da agua um cinto com 12kg também não é moleza não, mas como uso um lastro maior que a maioria dos mergulhadores, pois quero ir mais fundo de forma mais rápida sofro um pouco com isso fora da agua. Hoje nem sei se é possível eu prender uma coisa dessas em minha cintura aparafusada e sair vivo (hsudhsu mas eu vou tentar pode ter certeza) agora com dificuldade pego a mascara que tem acoplado junto a tira que prende ao contorno de minha cabeça o snorkel (tubo que ligado a boca permite a respiração sem retirar a cabeça da linha da agua em ate uns 20 cm de profundidade) em uma mão e na outra tenho as duas nadadeira, estas são do modelo de mergulho para grande profundidade e devem ter em torno de um metro. Salto para o vazio como se tivesse segurando uma bigorna, caio pesado na agua e em segundos estou em uma mar literal e abstrato um de agua outro de bolhas. Como o cinto é mais pesado do que o normal tenho alguma dificuldade em me manter na superfície estando com as duas mão ocupadas, mas loco encaixo as nadadeiras e o controle vem junto com elas. Nem todas as etapas de um mergulho livre em apnéia são merecedores de prosa muito menos verso como a parte que se passa saliva na lente da mascara, mas a pratica nos mostrou que ela é um ótimo anti-embaçante.
Nado em direção a popa do barco ja ansioso, sei que encontrar um mar com as condições certas é muito difícil, houve anos que em 20 dias na praia nem mesmo 1 ofereceu condições como as que encontro agora. Me apoio na beirada e alcanço o arbalete, um dispositivo formado por um peça de alumínio preto que mais parece uma arma e por uma seta de aço, seu tamanho armado é em torno de 1,20 metros o que pode ate parecer longo, mas é toda a distancia que tenho para poder mirar e disparar, diferente do que pode parecer, la em baixo a comprimento da arma até o peixe é tudo que temos para acertar. Com o respirador junto a boca, mordo com força o encaixe e sorvo o primeiro trago de ar através do cano, logo tento ficar em uma linha horizontal com a superfície, forço minha cabeça para baixo, meus pés com as nadadeiras saem para fora da agua, desço perpendicularmente para o vazio, o chumbo deixa tudo mais fácil, literalmente morro a abaixo ele é de grande ajuda, e para a volta tenho meus enormes "pés-de-pato" para confiar e subir. Como quando entramos em um quarto escuro, os primeiros momentos são tensos, nos sentimos fora do nosso ambiente mas tudo vai criado forma e contorno e o primeiro choque vem do som, ou seja de sua completa ausência, a unica coisa que passa a produzir algum ruido é meu coração e o barulho do snorkel sendo preenchido com agua. Nos primeiros dois ou tres metros os ouvidos doem por causa da diferença da pressão, eu aplico a manobra de Valsalva com um pouco mais de força que deveria, sinto ar sair pelos ouvidos, um sinal de que ainda estou fora de forma. Em momentos que parecem poucos segundos e com apenas 3 ou 4 metros de profundidade meu corpo me avisa inconscientemente que todo o esforço ja feito é o limite e que apenas a metade do caminho esta percorrida, a metade de volta ainda é necessária e assim volto em direção ao clarão da superfície sentido a pressão diminuir o peito ficar mais leve, ao chegar lá assopro com força pelo canudo do snorkel e toda a agua junto com o que sobrou de meu fôlego sai como um jato. Respiro muitas vezes ate meus batimentos cardíacos voltarem a se acalmar um pouco e novamente repito toda a operação, terei que fazer isso cerca de uns 25 ou 30 minutos para tentar romper "a barreira". Eu a chamo barreira pois ela é um de meus limites pessoais, demora meia hora para eu estar devidamente aclimatado e adaptado a pressão, e logo ter a coragem de ataca-la, assim acostumado decido tentar.
Ela encontra-se em torno de 12 metros a baixo do nível do mar, ou seja a 24 metros do próximo fôlego de ar...(ida e volta) Estou a cerca de 10 metros, quando nesse momento a pressão é tanta que meu peito começa a doer, por todos os lados a agua nos informa que não deveríamos estar aqui, tudo fica repentinamente desconfortavel, o mais chato é que todo ar que existe na mascara em frente a meus olhos é expulso dali e a visibilidade simplesmente desaparece, para isso é preciso assoprar levemente com o nariz, tirar, criar algum ar para que se possa voltar a enxergar, neste momento devo estar a 70 talvez 80 segundos sem respirar, confesso que o desespero de voltar a superfície começa a rondar o fundindo de meu cérebro e como se por um passe de mágica, no exato momento em que voce esta prestes a desistir, largar tudo e subir ele aparece. Lentamente nadando na segurança da grande profundidade junto as rochas uma Garoupa passa em minha frente muito devagar e muito desengonçada, como se mais nada importasse, meu foco esta todo naquele peixe agora, mais nada existe, falta de ar, desconforto, o frio imenso. Empurro o arbalete que trago junto ao corpo em direção a ele, neste momento não tenho tempo de sequer pensar em mirar, uso o tamanho da arma para quase tentar encostar no peixe que sente agora minha presença e começa a acelerar, infelizmente (para ele) ja é tarde, puxo o gatilho e ouço o estalido da borracha e da flecha saindo, não sei se o barulho existe ou se é uma criação de minha mente condicionada ao barulho do disparar " uma arma" mas o que se segue é uma linda lição da grande vontade de fazer algo com a falta de experiência em faze-lo pois, o peixe ainda vivo nada como um louco em direção ao fundo, eu começo a subir pensando na ar que meus pulmões tanto precisam, e de como seria bom sair daquela agua congelante que não tem o calor que vem do sol mais a cima porem tenho que ser lento e rítmico para não sofrer uma embolia ao sair da agua, mas a força que o peixe faz para baixo é grande e continuo puxando para cima com a certeza de uma missão completa e bem sucedida. Talvez algum tempo depois eu possa descobrir que a arma é feita para flutuar ao separar-se da seta, e que o carretel de linha que prende a seta a arma depois de esta estar presa ao peixe sobe sozinha e automaticamente em direção a superfície , liberando o caçador de qualquer preocupação com o peixe que acabou de ser pego, em fim atalhos que a vida nos mostra apenas depois de o caminho mais difícil e longo ja foi percorrido. Cansado mas espantado pelo que acabo de fazer começo a atacar a barreira com mais facilidade e o grande vício e talvez a falha do caráter de todo caçador-submarino começa a surgir: quanto mais fundo será que eu posso ir?
No aproximo ano volto, e o mar fica o verão inteiro fora de condições de mergulho algum tempo depois opero a coluna e tudo que me resta são as lembranças, sorte a minha que são ótimas lembranças...

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